sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Transição capilar: um ato de resistência

É cada vez mais comum encontrar mulheres que abandonaram a química e aderiram ao processo para retomar os fios naturais; feminismo e empoderamento são alguns dos responsáveis

Por Fernanda Pereira

Desde o início da saga do alisamento capilar, em 1930, mulheres de todas as idades se rendem à técnica por diversos fatores – de gostos pessoais à pressão social. A transição capilar é o processo de abandonar a química que altera a estrutura do cabelo (alisamento, relaxamento) ou a cor e assumir a forma natural. Não importa se o cabelo é crespo, cacheado ou liso, a transição é para qualquer pessoa que deseja se livrar da química. Nesse caminho algumas dificuldades aparecem e é preciso que toda a sociedade seja reeducada para entender a volta dos cabelos à naturalidade.

Cerca de 70% da população brasileira têm cabelo cacheado, segundo pesquisa do Instituto Beleza Natural e da Universidade Nacional de Brasília. Por muito tempo, cabelos crespos e cacheados foram desvalorizados e se tornaram motivos de preconceito e descriminação. Dessa forma, mulheres encontraram nas químicas capilares uma forma de se encaixar no padrão imposto pela sociedade. Esse é o caso da redatora Valéria Soares, de 21 anos, de São Paulo (SP), que resolveu abandonar os cachos pelo preconceito que sofria na escola. “Eu comecei a ouvir ‘piadas’ por causa do cabelo e, querendo ou não, era uma pressão para ter cabelo liso”, desabafa. “Passei o primeiro relaxamento aos 12 anos e aos 13 comecei a fazer progressiva. Ao todo foram seis anos de química”, continua.

Valéria Soares, antes e depois da transição capilar. Foto de arquivo pessoal.

Não é difícil encontrar pessoas com histórias semelhantes. A estudante Lais Amelia, de 16 anos, de Fortaleza (CE), também se rendeu ao alisamento por sentir vergonha do cabelo. “Tinha vergonha dos meus cachos, as pessoas falavam para alisar e acabei fazendo isso”, diz. Hoje, após dez meses no processo de transição, Lais explica os motivos que a levaram a assumir a sua forma natural. “Parei de fazer a progressiva pelo desejo de não depender mais de produtos químicos, de libertar os meus cachos”, explica.

O cabelo é ainda, para homens e mulheres, um forte símbolo de poder e sensualidade. Não é à toa que quando alguém está querendo mudar algo na vida ou na aparência, o cabelo é um dos primeiros a passar por modificações. A psicóloga Patrícia Lira explica o estereótipo que existe entre cabelo e feminino. “Isso traz a importância para autoestima da mulher, por ser representativo, falar a respeito do estilo de vida, dos cuidados e até mesmo personalidade ou como está naquele momento específico”, ressalta.

A vendedora de bijuterias Mary Luzia, de 63 anos, de São Gonçalo do Sapucaí (MG), é uma prova que a transição capilar está atingindo cada vez mais pessoas. Ela tinha o cabelo armado e resolveu alisar para reduzir o volume. Quando era mais jovem, passava ferro de roupa nos cabelos para conseguir o efeito liso. Após cinco anos de escova progressiva, decidiu assumir os cachos. “Me sinto bem, a maioria das pessoas que eu conheço falam que eu estou diferente e mais bonita”, conta. 

Mary Luzia, antes e depois da transição capilar. Foto de arquivo pessoal.

Antigamente, enquanto o alisamento ainda era a primeira opção para muitas mulheres quando o assunto era cuidados capilares, poucos profissionais sabiam de fato trabalhar com cachos e cabelos crespos e ensinar suas clientes a lidarem também.

A cabeleireira Celi Zonta, dona de um ateliê para cabelos em São Paulo (SP), conta como foi que a sua experiência começou. Uma cliente, que agora virou amiga, tinha o cabelo na altura da cintura e com escova progressiva. Ela contou à Celi sobre sua vontade de voltar aos cachos e foi aí que a transformação se iniciou. “Foram duas fases. Na primeira, ela fez um corte médio, na altura dos ombros. Dois meses depois ela me procurou novamente e tiramos o restante. Foi tão lindo, libertador e intenso, que me apaixonei completamente. Choramos muito”, conta Celi. Entretanto, antes desse acontecimento, sua realidade era outra. “Eu não sabia nada, nem cortar da forma correta e nem sobre produtos”, confessa.

Mary Luzia conta como se sente hoje, após a transição:


A cabeleireira Titta Santos, de 36 anos, de Bauru (SP), optou por se especializar em cabelos crespos e cacheados por dificuldade em achar profissionais no mercado. “Sou crespa e encontrei dificuldade em achar profissionais que cortassem e tratassem do meu cabelo de forma natural, sem sugerir química de transformação, como relaxamento, por exemplo”, conta.

Além de incentivar suas clientes a assumir os cabelos naturais, Titta está à frente do projeto Cabelo crespo é cabelo bom, no qual por meio de palestras ensina as pessoas  a cuidarem do cabelo crespo com produtos naturais e acessíveis. “Eu vou onde me chamam, mas gosto de ir em comunidades carentes e conversar com as crianças”, ressalta.

Titta Santos em uma de suas palestras. Foto de arquivo pessoal.



Mudança e saúde

Dificuldade para encontrar profissionais qualificados, produtos adequados e pressão social eram os principais motivos para que o alisamento ainda fosse tão procurado. Ao entrar na faculdade, a redatora Valéria sentiu uma mudança em vários aspectos de sua vida e decidiu que tentaria assumir seu cabelo natural novamente. “Depois eu entendi que era importante para mim por uma questão de identidade e também por estar cansada desses processos”, conta.

Optar pela transição capilar é um ato de resistência. Vários fatores contribuem para esse encorajamento feminino. “Estamos em um momento em que a mulher tomou força e voz”, defende a cabeleireira Celi. “O movimento feminista tem total influência nisso. Trabalhamos, estudamos, cuidamos dos filhos, saímos, namoramos, viajamos, militamos, não somos mais escravas de bobes, chapinha e uma imagem ‘perfeita’”, completa.

A saúde também é uma questão importante para ela. Em sua experiência profissional, Celi observou que desde os anos 90 as pessoas estão alisando os cabelos de forma desenfreada. “Hoje estamos colhendo os frutos. São cabelos ralos, finos, opacos e sem movimento. Couros cabeludos descascados e feridos. O que era benefício, depois de anos de aplicação, vira o pior vilão do cabelo”, destaca.

É comum encontrar histórias de pessoas que morreram pelo uso errado do formol durante a escova progressiva. O limite máximo permitido é 0,2%, mas, por ser uma pequena quantidade, tem pouco efeito de alisamento no cabelo. Dessa forma, profissionais usam uma quantidade a mais do produto, oferecendo riscos às clientes, que às vezes nem sabem qual produto e quantidade está sendo usado. Algumas pessoas também manuseiam o produto de forma caseira, redobrando o perigo. Por esse motivo, a venda do formol diretamente aos consumidores foi proibida em 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A transição pode ser um processo longo, dependendo do comprimento do cabelo. Há quem não aguente esperar os fios crescerem naturais e aderem ao big chope (grande corte, em inglês), que consiste em cortar toda a parte do cabelo que ainda tem produto químico.

Para quem tem apego ao cabelo e não consegue fazer esse corte, existem outras maneiras para disfarçar um cabelo com duas texturas, como a texturização, uma maneira de mudar a forma do cabelo para que a parte natural e a parte já alisada fiquem parecidas, como o dedoliss (cachos feitos com o dedo), coquinhos e tranças.

Também existe o processo do cronograma capilar, uma espécie de agenda definindo a frequência com que devem ser feitos os procedimentos de hidratação, nutrição e reconstrução dos cabelos.

Mas além de tudo isso, Celi aponta um outro fator que colabora para o processo: o auto respeito. “A transição geralmente acontece de dentro para fora. Então estar preparada é fundamental. Vai dar vontade de voltar atrás todo dia. Mas tem que ter força e persistência”, justifica.


Algumas marcas vêm apostando em produtos para as cacheadas no processo de transição capilar, como a Salon line e a Inoar. Foto: Fernanda Pereira.



Machismo

A operadora de guindaste Girles Santos, de 31 anos, do Rio de Janeiro (RJ), finalizou a transição há pouco tempo e aponta um fator que influencia negativamente na hora das mulheres optarem pelo processo: o machismo. Para ela, muitas mulheres sedem aos desejos de seus companheiros que preferem os cabelos alisados. “Muitas se privam pelo fato de marido não gostar, falam que preferem assim lisos, aí acabam desanimadas”. Já Valéria percebeu uma mudança ao assumir os cabelos naturais. “Os assédios na rua diminuíram muito”, conta.



O papel da internet

A internet tem um papel importante da disseminação do debate sobre transição capilar. Embora a mídia ainda não tenha aderido totalmente ao assunto, nas redes as mulheres encontram cada vez mais informação e apoio para enfrentar essa fase. “Nas redes sociais eu acredito que as famosas progressivas estão com os dias contados”, defende Girles.

Girles Santos, antes e depois da transição. Foto de arquivo pessoal.

Por mais difícil que seja passar pelo processo de transição capilar, o reconhecimento posterior é algo significativo para essas mulheres. “Me sinto leve, um pouco mais decidida”, conta Lais. Já Valéria se reconhece mais como pessoa.

Celi acredita que essa força veio para ficar. “Estamos falando de um movimento social gigantesco de representação feminina, já está atingindo a última geração”, aponta. “As cacheadinhas já estão aí com força total, mães fazendo transição com as filhas nas barrigas. Psicologicamente isso é lindo e muito representativo”, finaliza.
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Este blog é uma versão teste e provisória do Fapcomunica Online, jornal laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação

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